Texto e Fotos por Luis Veiga
Para abrir um caminho entre a América espanhola e a portuguesa, os colonizadores tiveram de galgar as escarpas dos maiores cânions do Brasil.
Nos meses de verão, quando nuvens vindas do litoral conseguem romper os penhascos, surge a viração. O choque térmico da massa fria com o calor estacionado na altitude faz com que a névoa se acumule em colunas cada vez mais altas.
Vistas de longe, essas colunas parecem estar em rotação de cima para baixo; de dentro, elas são como uma noite branca, a ponto de impedir que se enxergue além de 2 metros de distância. A viração é uma neblina espessa, quase palpável, que alcança a borda do planalto mas não avança por causa da diferença de temperaturas.
Na região da serra Geral, entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, ela é capaz de desnortear por completo o viajante desprevenido. Para escapar desse fenômeno climático assustador, explicam os moradores dali, só mesmo a cavalo. Um animal acostumado ao terreno acidentado, com uma sela confortável, forrada com pelego de ovelha. Sobre ela, um sujeito experiente e de boa prosa, um bornal com um farnel, um pala para se proteger da chuva e do vento e, se possível, dois ou três cachorros bons de faro. O vaqueano experiente não sai de casa sem seu facão e seus cães. Certa vez, eu cavalgava em campo aberto na companhia de um experiente vaqueano entre o cânion Monte Negro, no Rio Grande do Sul, e a região do rio Púlpito, em Santa Catarina. Com tempo bom, esse trajeto exige um dia de cavalgada. Mas, de repente, fomos surpreendidos por uma viração forte. Quase cego, perdi completamente o senso de orientação. Em um instante estávamos cavalgando sobre o campo; de repente, à beira de um penhasco; depois, dentro de um banhado. Apesar disso, meu guia e seus cães demonstravam tanta segurança nos rumos tomados que em nenhum momento me senti andando em círculos. A noite avançava quando enfim encontramos um trilho, que nos levou à sede de uma fazenda, onde pedimos pouso. No dia seguinte, o cavaleiro me conta que prefere nunca admitir que perdeu a direção. “Jamais se deve assustar o viajante”, diz. “Mais cedo ou mais tarde, iremos encontrar um caminho para casa.”
No trecho mais extremo de sua topografia, o planalto Norte-Rio-Grandense, que cobre parte considerável da região Sul do Brasil, ganha altitude ao aproximar-se dos litorais gaúcho e catarinense. Então, de repente, acaba. Desaparece. Sua borda plana desnivela-se abruptamente para esculpir um imenso platô, entrecortado por uma sucessão majestosa de abismos, penhascos, grotas e fendas. Vistas de cima, as planuras altas da serra parecem ter sido aparadas a tesoura. De baixo, o observador tem a impressão de que os contrafortes são muralhas de uma gigantesca e intransponível fortaleza.
Esse imenso degrau de 250 quilômetros de extensão e paredões que chegam a quase mil metros de desnível é conhecido como Aparados da Serra. A dificuldade extrema para vencer as escarpas verticais, o frio implacável dos invernos e o isolamento brutal a que foram condenados os primeiros povoadores forjou um modo de vida peculiar, criou histórias, usos e costumes, lendas e mitos que sobrevivem até hoje, quase 300 anos depois do início de sua ocupação.
Antes de os conquistadores europeus chegarem a Aparados, a região era parte de um vasto território disputado por tribos de índios guaranis, coroados e botocudos, que rivalizavam no planalto, e os carijós, que dominavam a faixa litorânea a leste. Povos nômades perambulavam por todas as direções. Os botocudos, senhores das escarpas, transitavam serra abaixo em busca de peixes e mariscos que abundavam nas lagoas costeiras e retornavam à parte alta na entrada do outono para coletar pinhão e caçar.
Os primeiros estrangeiros que se aventuraram a estabelecer uma rota norte-sul, ou seja, um caminho que cruzasse todo o planalto, foram os missionários jesuítas espanhóis, guiados por índios guaranis, no fim do século 17. As trilhas indígenas partiam dos Campos das Missões, a oeste do Rio Grande do Sul, e seguiam em direção aos campos de Curitiba até chegar a Sorocaba, já perto de São Paulo. Hábeis comerciantes, os jesuítas tinham como objetivo o contrabando de muares trazidos de Córdoba, na Argentina. As longas travessias em terras brasileiras justificavam- se pela elevada soma obtida na venda dos animais. A coroa portuguesa fazia vista grossa à prática, pois não mantinha relações comerciais com a Espanha e carecia de transporte de carga.
Não tardou, porém, para que o rei D. João V ordenasse esforços a favor da abertura de um caminho terrestre regular que ligasse a província de São Paulo à vila de Laguna e à Colônia do Santíssimo Sacramento, nas margens do rio da Prata. Coube a Francisco de Souza Faria, sargento-mor da cavalaria portuguesa, a árdua tarefa de abrir a estrada, que precisaria superar as escarpas de Aparados da Serra para marcar uma ligação entre a planície litorânea e a borda do planalto.
Souza Faria partiu de Laguna com seu piloto José Inácio e uma tropa composta de índios, brancos e escravos, um total de 96 pessoas. Em 11 de fevereiro de 1728, depois de 11 meses de aventura, o militar margeou o leito do rio Araranguá em direção a sua cabeceira, galgou a íngreme encosta e alcançou finalmente as terras conhecidas como Vacarias dos Pinhais, no planalto. Depois de aguardar por seis meses a chegada de reforços – metade de sua tropa havia deserdado –, Souza Faria rumou em direção ao interior do Paraná, terminando sua viagem em São Paulo em 2 de fevereiro de 1730. Estava assim criado o Caminho dos Conventos, primeira ligação entre a província de São Paulo e a bacia do rio da Prata. O curto trecho do caminho que galgou as escarpas de Aparados da Serra foi o elo que faltava para a malha viária do Brasil colonial estar completa e poder abastecer de gado, cavalos e muares as minas de Goiás e de Minas Gerais.
Ao longo dos anos seguintes, porém, a trilha extenuante aberta por Souza Faria seria várias vezes revisitada. Um novo traçado desviava de Aparados da Serra e ganhava o planalto mais ao sul, onde as serras são menos íngremes. Dali partia dos campos de Viamão, cruzava Vacarias dos Pinhais rumo a Lages para então retomar o trilho original. Essa rota, o famoso Caminho de Viamão, consolidou-se, tornando-se a principal via terrestre do sul do país.
Com o tempo, outros caminhos foram sendo abertos nas encostas de Aparados. Por eles desciam tropas de mulas carregadas de charque, couro, sebo, queijo, milho e pinhão; as mesmas subiam de volta com os cargueiros abarrotados de sal, açúcar mascavo, café, arroz, cachaça, farinha de mandioca, querosene e armas. O comércio em lombo de mula intensificou-se no século seguinte. Fortunas foram amealhadas por tropeiros, que desafiavam os perigos das serras enfrentando ataques de bugres, salteadores e animais selvagens. Até a década de 1950, o vaivém de tropeiros perdurou como única forma de abastecimento e de contato das populações isoladas de Aparados da Serra com o resto do país.
Laurindo Claro da Rosa, o tio Lauro, como é chamado por ali, hoje com 77 anos, passou a maior parte da vida tropeando em um trecho conhecido como serra da Veneza. Lembra-se, com detalhes, da primeira vez em que cruzou as escarpas, quando tinha 11 anos, e desceu a pé tocando uma tropa de 80 porcos. Naquela época, criavam-se porcos soltos no planalto para que ganhassem peso durante a temporada do pinhão. Quando a semente da araucária escasseava, os animais eram preparados para viagem serra abaixo. O método era cruel: Lauro costurava os olhos dos porcos e depois banhava os pontos com creolina para desinfetar. Cegos, os suínos tornavam-se manuseáveis, fáceis de serem conduzidos, pois se guiavam apenas pelos ruídos da tropa.
Susto na serra Lauro só experimentou um. Foi no verão de 1974, quando desceu com um cargueiro para fazer rancho em uma venda. Ao retornar no dia seguinte, acabou sendo surpreendido por uma chuva pesada bem no meio da subida. Lauro não se intimidou e seguiu. Logo, porém, uma enxurrada o obrigou a procurar abrigo em uma encosta, onde permaneceu ilhado por cinco dias. Molhado e enfraquecido, lançou a sorte em um último ato: amarrou o braço direito no cabresto de sua mula e empurrou-a para dentro d’água. O animal, assustado, venceu a corredeira e alcançou a outra margem, trazendo Lauro de arrasto. O tropeiro chegou ao planalto, e apenas dois dias depois ele e os vizinhos tomaram conhecimento de que o dilúvio que se abateu sobre a região havia feito desaparecer por completo o arraial no pé da serra.
Na década de 1950, um novo ciclo econômico abriu-se na região de Aparados: a exploração da madeira de araucária. Apenas nos arredores de Bom Jardim da Serra chegaram a existir 50 arraiais de serrarias. “As madeireiras compravam apenas toras do pinheiro com mais de 60 centímetros de diâmetro”, diz Antônio Pereira, de 71 anos, ex-tropeiro. “Não era raro abaterem araucárias cujo tronco chegava a 1,80 metro de diâmetro.” As toras eram serradas em pranchas, as quais desciam a serra em um sistema de cabos aéreos para então serem despachadas para o porto de Laguna, de onde eram embarcadas para Porto Alegre, Buenos Aires, Santos e Europa.
No fim dos anos 1970, as madeireiras rumaram para a Amazônia. A região de Bom Jardim da Serra voltou à pecuária, vocação natural que nunca foi totalmente abandonada. Mesmo destino não teve Cambará do Sul, porém. Há 70 anos a cidade é sede de uma indústria de celulose que, durante décadas, usou apenas a araucária como matéria-prima para sua produção de papel – agora substituída pelo Pinus elliottii. Nunca houve preocupação em replantar as antigas florestas de araucária, árvore-símbolo não apenas da serra Geral mas de toda a vegetação do sul do Brasil.
Mesmo com a mudança de atividade econômica, odisseias para subir e descer as serras não deixaram de acontecer. As escarpas temíveis, às vezes emolduradas pela espessa neblina, seguiram povoando a imaginação dos viajantes, como nos tempos dos desbravadores. Lendas de tesouros enterrados em grotas por missionários jesuítas que subiam pelo rio Pelotas são até hoje comuns nas rodas de chimarrão, assim como os causos que relatam ataques, escaramuças e atrocidades de brancos contra os índios e vice-versa. A prática do montanhismo na região ganhou força com a criação do Parque Nacional de Aparados da Serra, um dos primeiros do país, em 1959. Naquele ano, Ido Ernesto Günther guiou um grupo de escoteiros que realizou a pioneira travessia do cânion Itaimbezinho. Sem saber, inaugurou mais um ciclo de aventuras em Aparados da Serra.
Tive a chance ainda de cruzar por duas ocasiões o Itaimbezinho. Como as travessias dos cânions começaram a registrar novos acidentes, e até mesmo mortes, estão proibidas por completo pelos administradores do parque nacional. Mas nunca deixei de retornar a Aparados, agora apenas a cavalo, no planalto, sempre na companhia de algum amigo vaqueano, sabedor dos segredos dos caminhos e, acima de tudo, da viração.